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quinta-feira, 14 de abril de 2011

RIACHO DE CAMANDAROBA

– Seu Batista, vamos comer um veado?
– Quando?
– No dia vinte e quatro.
– Onde?
– Na fazenda de painho, lá no Riacho de Camandaroba.
– Oxi! Menino, e lá tem lugar pra isso?
– Lá nós temos cinco suítes presidenciais, dois salões de festas, três salões de jogos, duas piscinas olímpicas de padrão internacional, saunas, quadras de esportes, campo de futebol, pista de atletismo, salão de ginástica... pô, se eu for falar tudo, passo é o dia e a noite...
Alexandre Pacheco, jovem empresário da cidade de Cansanção, havia estacionado a HILUX prata na frente da residência do velho amigo de infância do seu pai. Amizade antiga e muito estimada pela família. Além disso, o jovem admirava aquele homem vitorioso, aquela figura respeitável. Segundo tenente reformado da Marinha, “natural do Jatobá”; bem ali nas caatingas de Cansanção; mas que viveu no Rio de Janeiro por tantos anos, viajou pelo mundo, ancorou em tantos portos, viu tantas e tantas coisas belas em cidades da América, da Europa, da Ásia... Para o moço Alexandre, era de grande interesse mergulhar por tardes a fio em longas e proveitosas conversas com Seu Batista; ainda que negligenciando por um pouco na condução dos negócios da família. Eram momentos de ócios muito produtivos, os períodos de conversas com Seu Batista. Saber tanto do mundo, das belezas do mundo, dos encantos de terras tão distantes; mas, principalmente, das condições de sobrevivência do homem sertanejo fora do seu torrão natal. Como era possível que um homem saído das entranhas remotas da caatinga conseguisse sobreviver em outras regiões do país, marcadas por tantas formas de hostilidades ao nordestino, por tantas formas ostensivas de execração ao povo dos sertões da Bahia e ainda pudesse retornar para sua terra em condições tão favoráveis? Pois que, contrariando as narrativas da Diáspora Sertaneja, o velho homem do mar nunca falava de padecimentos, aflições, misérias. Falava de monumentos suntuosos, de espaços elegantes, de artes inebriantes, de sítios históricos extraordinários; também do Tibre, do Danúbio, do Reno. Certa feita, contou-lhe de uma viagem à Grécia em um navio-escola; de visitas aos monumentos clássicos: as ruínas do Areópago, o Templo de Apolo e o Teatro de Dionísio. Seu Batista era assim, um homem querido e respeitado por toda a população do município de Cansanção, e pelo fato de ser oficial reformado de uma força armada; muito viajado; figurava pessoa muito importante para aquela sociedade sertaneja. No entanto, para o moço Alexandre – além dos valores de amizade com a sua família – Seu Batista mais interessava por uma outra narrativa diaspórica que lhe oferecia. Pois a Diáspora Sertaneja é uma grande narrativa que interessa às elites que detém poder econômico e político no contexto social do sertão baiano. A diáspora para “fora” tanto assusta quanto amedronta às classes dominantes e abastadas do interior baiano. Portanto, migrar em busca de trabalho e melhores condições de subsistência em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso, Goiás é coisa de pobre, flagelado, miserável. A esses lugares devem ir as oligarquias sertanejas para assuntos de negócios, turismos, estudos ou tratamentos de saúde; jamais em busca da subsistência a que são levados os descamisados. Todavia, persiste uma grande curiosidade da parte dos membros dessas elites sociais quanto às experiências concretas de vida pobre de “fora” destes espaços sertanejos. Uma espécie de profilaxia da pobreza. Dessa forma, toda a pessoa levada pela enxurrada diaspórica que consegue retornar ao sertão em condições de sobreviver sem recorrer a esmolas e a favores políticos humilhantes é inquirida exaustivamente pelas hostes dominantes. Portanto, há uma cultura de escuta permanente dos relatos identitários dos filhos da exclusão. Eles são enredados em uma trama persuasiva em que, sem perceber, oferecem toda a materialidade para o aperfeiçoamento dos mecanismos de opressão com que os poderosos vão continuar fabricando miseráveis para serem lançados à vala abominável do flagelo premeditado e financiado pela barbárie capitalista.
O capitalista sertanejo de “dentro”: fazendeiro, comerciante, grileiro, latifundiário, chefe político, empresário nunca fala ao pobre de si nem de sua condição de abastado, mas da vida do pobre e do negro tem uma necessidade de leitura incisiva e quer saber minúcias do que come, de como dorme, de como se veste, de como faz sexo, enfim de que modo consegue viver, contrariando a lógica da cultura da exploração do homem pelo homem. Principalmente se ousou viver fora do contexto em que nasceu e de onde foi escorraçado para “fora” no dorso da Diáspora Sertaneja.
Pensar a diáspora neste contexto do Sertão de Canudos, interrogá-la, logo implica pensar o negro. Principalmente porque a população negra foi maioria em Canudos na era de Antônio Conselheiro e da Guerra. A própria Guerra decorreu de um movimento diaspórico. Portanto, negro e diáspora, neste contexto, são intrínsecos. Neste sertão não há negro sem diáspora, não há diáspora sem negro.
No sentido de uma leitura inexorável da Diáspora Sertaneja, a bem da verdade, pode-se afirmar que as potestades políticas e econômicas têm razão. De fato, a invenção do Sudeste do Brasil enquanto “fora” desejado e grande centro de desenvolvimento industrial e financeiro, logo representa para o Nordeste uma imensa bacia de descarte dos grandes problemas sociais e humanos que esta parte do mundo deveria enfrentar. Assim é que a fabricação de São Paulo, por exemplo, tornou-se de utilidade teleológica para as potestades dominantes do universo sertanejo do Nordeste brasileiro; ainda mais na perspectiva da absorção ou da trituração dos materiais humanos não nobres, projetados das esferas sociais do sertão do semiárido baiano para as engrenagens avassaladoras de São Paulo. Portanto, a Diáspora Sertaneja funciona como a linha divisória estabelecida entre aqueles que têm o privilégio de permanecer territorializados e os que são condenados à (des)territorialização, ao espaço de “fora”. A fronteira da exclusão define a Diáspora Sertaneja. Todavia, aqui ela também se dobra e institui um “fora”, “dentro”. Portanto, deste (des)foramento interno se encarrega a Indústria Cultural. Ela se revigora e se expande no panorama da diferença instituída no plano binário das articulações culturais, através da oposição muito sutil entre o nobre, o elegante, o sofisticado. E o grotesco, periférico, sujo, carnavalesco. Por exemplo, nas ocasiões em que as elites sociais fazem concessões a grandes demandas periféricas, promovendo festas ou espetáculos de massas, financiados com dinheiro público. Elas próprias, as elites, insistem em definir, com o trabalho da Indústria Cultural, a linha divisória que marca a diferença. Raramente uma pessoa da elite aparece no meio do espaço público em que se realiza a festa popular sertaneja. Há um resguardo estratégico. Exceto quando a situação de interesse político exige por um tempo a aparição apoteótica de alguma representação oligárquica. Neste sentido, prevalece alguma forma de manipulação, visando à promoção de alguma candidatura a cargo eletivo ou por força da presença de algum expoente da Indústria Cultural com aparição mais frequente nas mídias de maior alcance, contratado como grande atração pelo poder público, para vociferar linguagens de apelo patético às periferias sociais, sempre em tom de bajulação ridícula ao gestor do erário público que administra o financiamento do evento cultural. Então, é aí que também se institui um quadro bem delineado para ofuscar a “grande atração”, de modo que ela jamais venha a ameaçar o brilho das chamadas Pratas da Casa. Tudo é premeditado. Dessa forma, sobe ao trio elétrico ou ao palco, ao lado da “atração”, que deveria ser principal, uma jovem branca, filha, neta ou bisneta de quem detém o poder no momento e que vive na capital do estado a expensas dos cofres municipais, para “arrasar” na noite sertaneja. O fascínio pela Sinhazinha ou Patricinha branca é ainda muito pujante neste sertão. Na verdade, nos eventos culturais sertanejos a Patricinha é que é a Grande Atração; a outra somente se apresenta para contracenar com ela. E do alto em que se exibe, sob aplausos histéricos, a jovem funciona como um significado denso de poder sempre venerado, internalizado e obedecido pelas demandas sociais subalternas; inclusive o poder sensual. Lá embaixo, condicionada pelos significantes pulverizados pelos gritos estridentes do fetiche eletrônico, a galera se esbalda.
A ovação histérica à beleza branca da Patricinha leva-a a emulações extremadas. Assim, em estado de alucinação orgásmica, ela se põe a incitar o povão a extravagâncias de todas as formas. Ela mesma, também, símbolo sexual por excelência, reina sobre o Império dos Sentidos, e com requintes de sarcasmo, cinismo e sadismo ordena às meninas pobres e negras que se escravizem a orgias desregradas e que curtam a noite como se fosse a última. Afinal, é uma ordem! Além disso, a reificação da Patricinha também é uma relação de cópula no dorso da diáspora. Literalmente, ela fode a diáspora em plena festa pública, depois se retira para os ambientes sofisticados e reservados às elites onde se promovem orgias elegantes, extravagantes e requintadas, patrocinadas pelo erário público, deixando as massas submissas, no dizer bem sertanejo, do jeito que o diabo gosta. Ora, as meninas das oligarquias dominantes podem exagerar nos seus desregramentos obscenos porque contam com o apoio logístico da engrenagem econômica e financeira do Estado de Direito e Democrático para cobrir seus gastos com planos de saúde milionários, despesas com abortos, viagens para o exterior em busca de tratamentos especializados, compras de amantes, longas temporadas em espaços sofisticados de repousos e de reestabelecimentos de energias. Mas a realidade da menina pobre de periferia é assaz degradante. Essa vai padecer com as deficiências de serviços médicos humilhantes em postos de saúde de notória precariedade, e se consegue sobreviver a um parto de alto risco, realizado em condições repugnantes em algum hospital público; então; terá que assumir as responsabilidades de mãe solteira, na maioria das vezes aos treze, quatorze ou quinze anos de idade. Será que o sexo está no centro do corpo diaspórico e a Patricinha é o seu principal estopim erótico?
É oportuno ter Consciência Negra de que neste sertão da Bahia a Abolição da Escravatura, então vociferada pelo Estado, somente ocorreu em termos de discurso vazio. A escravidão mental e sexual do negro permanece tão mais perversa quanto foi a da exploração do corpo do negro enquanto força de trabalho forçado e, nesta perspectiva de dominação, continua a funcionar a lógica branca, também através de suas dimensões política, econômica, cultural, lúdica, sensual e estética. Principalmente, o poder dominante é fossilizado no imaginário lúdico do público de “baixo”.
No meio do grande público que está embaixo, há belezas negras de muito maior encanto que a encenação plástica imposta de cima, mas que ou não são percebidas mesmo pelas massas, ou são desdenhadas por mera inépcia de reconhecimento do que é mais peculiar. Então convém interrogar: o que embaça tanto a beleza negra a ponto de torná-la imperceptível, mesmo nos espaços culturais de maioria negra? Por que a negação intransigente do que é tão óbvio? Será que a ressonância diaspórica não nos deixa olhar para o lado? Não que se pretenda construir um discurso preconceituoso ou ressentido com relação a outras etnias, mas é preciso interrogar o óbvio. É necessário gritar para o óbvio!
Mas, o sertanejo não grita para a ressonância diaspórica, por isso o seu corpo fica marcado por várias identidades.
Policarpo Pereira Anastácio Batista nasceu na Fazenda Jatobá, no dia 05 de fevereiro de 1938. Descendia de uma família constituída por um desertor da Guerra de Canudos e uma negra filha de escravos africanos, remanescentes da Fazenda Acaru em Monte Santo.
Quando as tropas da Expedição Artur Oscar demandavam de Queimadas para Canudos, via Monte Santo, um soldado da comissão de engenharia deu partes de doente na entrada da Fazenda Jatobá. Um dos médicos da força examinou-lhe, prescreveu-lhe alguns recursos e sugeriu ao comandante que ele fosse deixado a convalescer até o dia seguinte, quando então acompanharia outro batalhão. O jovem soldado quedou-se por algum tempo, depois teve sede e dirigiu-se a uma choupana próxima para pedir ajuda. Veio-lhe em auxílio uma moça negra de beleza extasiante, trazendo uma cabaça d’água e uma cuia de beber. A febre evadiu-se e o jovem abriu o coração: não suportava mais “aquela vida desgraçada que vinha arrastando”. Bebeu a água e contou a sua história.
Era filho de uma índia da Tribo Itaguaí com um aventureiro francês. Era um índio de olhos celestes, tal como no dizer de O Cativo, de Jorge Luís Borges. Fora recrutado à força na estação ferroviária de Santa Cruz no Rio de Janeiro e incorporado à expedição, agora queria desertar. A negra bonita fez uma menção com o lábio inferior apontando-lhe uma nesga de serra distante no meio da vegetação cerrada.
– Cê vai, tô dia eu levu di cumê e auá!
O homem partiu para o coração da caatinga e a moça passou a cumprir a palavra. Certa manhã, a saia desfraldada por espinhos deixou entrever o sexo. Nunca mais se apartaram.
Finda a guerra, as tropas retornaram para o Sul do país e o jovem casal para o Jatobá, onde passou a botar roça e a labutar com criação. Foi desse enlace que surgiu A Nação dos Índios Negros do Vale do Jacuricy. Do patriarca nunca se sabia o nome, era tratado por “O Home”. Até que certo dia um técnico da Inspetoria Federal de Obras Contra a Seca (I.F.O.C.S.) passando pelo Jatobá para realizar o censo, conseguiu verificar alguns antigos documentos do “Home” e então o aconselhou a legalizar a situação da companheira e a registrar os filhos para que pudesse receber os benefícios mandados pelo governo. Ele o fez de muito bom grado, mas não se lembrava mais da Guerra de Canudos e havia apagado para sempre a memória do Rio de Janeiro. Veio a falecer em uma tarde singular, quando madornava em uma esteira de pindoba no oitão da casa; pouco tempo depois de haver se tornado viúvo. Passava dos noventa anos de vida; venerado por filhos, netos, bisnetos e tataranetos. Policarpo Batista era um dos filhos mais novos. Um Índio Negro.
Quando Policarpo completou dezesseis anos de idade, um tio que trabalhava na Companhia de Carris e que veio de férias de Salvador para passar uns dias no sertão argumentou que ele devia ir para um mundo mais civilizado. “Um menino como este não pode ficar neste oco de mundo”! Foi assim que ele terminou ingressando na Marinha em Salvador; sendo removido depois para servir no Rio de Janeiro.
Na capital federal, sem parentes ou amigos, o jovem Policarpo morava na própria caserna; tal como sucede ao militar de origem nordestina, deslocado para aquela parte da Região Sudeste. Por um período de seis meses, o moço não saía das dependências do quartel para nada. Mas, naquele ambiente disciplinador, logo passou a cultivar boas relações de amizade com um colega de origem paraibana que se achava naquele serviço há muito mais tempo, portanto, muito versado nas relações com a grande cidade. Foi assim que Policarpo foi mergulhando nos labirintos da vida obscura do homem nordestino no contexto noturno do universo carioca.
Em uma noite de folga chegou-lhe o colega:
– Tá a fim de dar soco?
– Pô... Barbosa, eu tô na onça...
– Mas é por isso mesmo, cara! É preciso sair dessa lona...
– Então eu topo!
– Vou te dar os macetes todos. Primeiro vamos passar na Central do Brasil, e depois dar um rolé pelas bocas.
Diante da antiga estação de trens da Central do Brasil, Policarpo ficou extasiado com as proporções daquele edifício suntuoso. Uma obra majestosa, rica, ostentando toda uma austeridade sisuda, pesada, soberba, imponente com a sua extensa fachada de mármore esmeradamente polido; contrastando com as sombras fantasmagóricas de homens e mulheres desfigurados pela noite carioca e refletidos na própria fachada de mármore, arrastando-se por aquele Mercado do Sexo periférico, centrado no coração da cidade do Rio de Janeiro. E a Torre da Central, atrevida como Babel, com o seu famoso relógio luminoso, visto de todas as partes da cidade e agora a embevecer todo o fascínio do homem simples, descambado da moleira do grande sertão de Canudos.
– Se toca cara! Qualé? Ficou abobado? Aqui você só deve vir em uma onça total. É no mictório que ficam os veados muquiranas, esperando alguém vir mijar pra eles cantar o cara. Eles ficam lá dentro dia e noite, fingindo que estão mijando só para olhar o pau de quem entra. Veado pobre, fudido, fuleiro. Não vale a pena. O máximo que você pega é um troco. Quer ver?
Mais adiante, os dois marinheiros achavam-se já na Praça Tiradentes.
– Preste atenção! Aqui já melhora um pouco, mas ainda não é o ideal para um cara safo. Vou te ensinar tudo: olhe! Ali perto do Teatro João Caetano; boca de travesti. Você é que paga. Aí é foda! Agora vamos para aquela boca: o Teatro Carlos Gomes, o Café Nathalia. Descendo pra lá, é a Rua da Carioca; cinema à pampa, cheio de bicha! Melhora um pouquinho. Pode-se arrumar uma graninha melhor, mas o problema é que as bichas moram nas cabeças-de-porco da Pedro Primeiro. Transar ali é como tocar punheta em pé de mandacaru. É por isso que você tem que se especializar, conhecer os melhores lugares e os Boys ricos, finos, elegantes. Altas contas bancárias. Altas patentes militares, médicos, artistas de renome, magistrados, parlamentares, ministros de estado. O meu Boy é médico, com consultório na Avenida Atlântica, filho de um ministro do governo. Eu vou ser promovido a sargento ainda este ano. Já está garantido. Mas o meu sonho é servir em João Pessoa. A minha transferência já está assegurada pelo meu Boy. O pai é Ministro, porra! Eu sou de Guarabira. Um dia, eu quero voltar para Guarabira, reformado como oficial. Eu quero criar cabras, bodes, ovelhas, bois, vacas. Eu quero andar pela feira de Guarabira todo encourado; pescar no açude, tomar banho de cuia, beber umbuzada adoçada com rapadura e dormir em rede de caroá...
– Tudo com ajuda de um veado?
– Mas é claro! Agora é Boy... Aprenda isto: veado é lá na Central. Agora é Boy. Veja, estou te levando aos territórios hierarquizados do sexo alternativo do Rio de Janeiro. Estamos indo agora para o Eldorado Carioca, a Cinelândia, o Amarelinho, o Passeio Público, onde impera o luxo, a grana, o prazer... Pela primeira vez você vai botar a mão em grana farta e fácil.
– Eu tô precisando. Soldo de militar é uma miséria; metade do meu soldo fica na cantina. Parte da outra metade fica nos descontos.
– Mas por que tanta despesa na cantina?
– E quem consegue comer aquela gororoba do rancho?
– Não sei. Eu não vou lá!...
– Pois é meu camarada, um dia desses eu escutei os caras do rancho discutindo porque um recruta sem saber pegou uma panela de lixo e colocou junto de uma de sopa. Daí não se sabia mais o que era o quê. Sabe aqueles panelões de aço? Aí o capitão chegou e resolveu o problema: “Requenta as duas e bota para servir”!
– Porra!... (risos).
– Então de marinha! É por isso que a gente tem que explorar o Boy. Você...
– Ih! Rapaz!
– Qualé?
– Ou eu perdi a minha identidade, ou ficou no quartel
– Fique frio. Daqui em diante as suas identidades serão outras.
Logo há poucos minutos, os dois marujos estavam diante do Bar Amarelinho na Cinelândia. Barbosa, velho conhecido na área, foi apresentando o Policarpo às suas antigas relações.
– É recruta?
– Não... Ele veio transferido de Salvador.
Chopes, uísques, cigarros, conversas, risos, abraços, e a noite foi avançando... Alta madrugada, despediram-se e os dois amigos desceram para o Passeio Público.
– Aqui é o seguinte: Fique atento para os carrões importados. Sempre atento para os mais caros e mais elegantes. É o pessoal da alta grana e do elevado poder político. Sempre a preferência deles é por militares, porque são selecionados de acordo com certos padrões de estética física; já para atender as taras das altas oligarquias; e também por questões morais. Ora, estão sujeitos a regulamentos, são disciplinados, submetidos permanentemente a inspeções de saúde e a exercícios físicos constantes. Além disso, a maioria destes militares são negros e nordestinos; os chamados picões. Agora você também é um picão. (Risos).
– Mas não dizem para a gente nos quartéis que toda a exigência com o preparo físico e a boa saúde é para nos aprimorar para a Guerra, a Defesa Nacional?
– Que Guerra porra nenhuma, cara? Que Defesa Nacional? A Guerra aqui é a da putaria mesmo, cara! Teve um naval cearense chamado Pica de Jegue que era disputado à bala aqui neste pedaço. Ele chegou muito bronco do Nordeste e costumava dizer assim: “Do ar urubu, do chão cururu”. Ele chegou comendo piranha, veado, travesti, Boy; o que caísse na rede. Ele dava soco da Central do Brasil ao Baixo Leblon, por isso chegou a ser considerado muito promíscuo, inclusive no quartel, o que não é bom. Certa feita, um graduado de serviço de comandante-da-guarda o surpreendeu na calada da noite entrando despido no alojamento do oficial-de-serviço. Foi lá e encontrou ele comendo o oficial. Deu voz de prisão aos dois, tocou o alarme e mandou ligar para o superior de serviço. Foi um rebu do diabo! Mas; no andamento do inquérito, o graduado é que foi punido com trinta dias de prisão em solitária, enquadrado no Regulamento Militar sob a justificativa de “Haver censurado ato superior”. E ainda foi transferido para o Amazonas. Pica de Jegue foi promovido a cabo. Então, chamei ele para uma conversa e passei a instrui-lo. Como estou fazendo contigo agora. Depois ele arrumou um suíço multimilionário, pediu baixa e hoje vive como um marajá em Genebra. Tirou toda a família que vivia abaixo da miséria extrema no Quixadá e a levou para a Europa; hoje vive todo mundo lá nadando em riquezas. Para essa gente poderosa e milionária, o papel do Estado é fabricar corpos de jovens pobres, negros e nordestinos para satisfazerem as suas taras. Veja esse carrão! Vai parar, pode ir fundo que eu vou no outro que vem logo atrás. Fique frio!
Apresentaram-se muito cordialmente, o que Barbosa exercia com maestria, acertaram preços e afetos, rumaram para uma boate caríssima em São Conrado, depois foram cumprir deveres em uma mansão ultra suntuosa no Grumari.
Poucos meses depois, o jovem cansançoense Policarpo Batista estava escolado no ramo. O fato de ser um negro de reconhecida beleza, ampliava-lhe as portas. Não carecia mais da ajuda do amigo Barbosa, que logo foi movimentado para servir em João Pessoa. Daí Policarpo veio a conhecer um armador europeu que passava longas temporadas no Rio de Janeiro e passou a morar em sua rica cobertura na Avenida Bartolomeu Mitre, no Leblon, ricamente sustentado pelo “amigo”, onde ficou por vinte e dois anos, trabalhando meio expediente e fazendo carreira militar. Mas o milionário era muito excêntrico e veio a falecer em Bariloche, a bordo de uma aeronave em companhia de amigos, mantendo relações sexuais em pleno voo. Quando Batista deu fé, havia herdado em testamento a cobertura em que morava, dois automóveis de luxo, um jatinho de passeio e uma mansão frente a uma praia de Búzios. Vendeu tudo, voltou para Cansanção, tirou os parentes da pobreza extrema e mandou construir rico pé-de-meia em seu torrão natal. Casando-se depois com Dona Angélica Pureza das Neves, antiga paixão de infância. Deitou âncoras.
Agora o encontramos perante o convite tentador formulado pelo amigo Alexandre:
– Topa?
– Eu topo!
– Fechado?
– Fechado!
Na manhã seguinte, Seu Batista começou a se arrumar para pegar o São Matheus. A esposa o inquiriu:
– Aonde tu vai criatura?
– Eu vou em Coité resolver uns negócios.
No comércio, Seu Batista adquiriu preservativos. E foi taxativo:
– Eu quero é com lubrificantes. Dos bons! Dos melhores!
Depois, bermudas, sungas, camisetas, meias, tênis, maleta esportiva de grife, energéticos, estimulantes sexuais e etc.
Três dias depois está Seu Batista a arrumar-se de novo.
– Vai viajar?
– Eu vou ali em Euclides da Cunha.
– Fazer o quê?
– Eu vou me matricular em uma Academia de Ginástica, mas é por pouco tempo; uns quinze dias; no máximo.
– Batista, você tá ficando doido? Que diabo tá acontecendo?
– Você sabe, eu fui de Marinha, um militar, não posso ficar fora de forma, senão me faz mal.
Na tarde do dia vinte e três, Alexandre Pacheco voltou à residência do velho amigo:
– Seu Batista, nós vamos hoje à noite.
– A que horas?
– Umas sete e meia...
– Combinado!
Tudo certo! Para Dona Angélica, o marido ia passear na Fazenda de amigos muito queridos.
Na manhã do dia seguinte, bem cedo, a recepção começou a ser arrumada. Logo chegou o pessoal do buffet com todos os requintes. Muitas bebidas finas, guloseimas, frutas, doces, salgados e etc.
Findo o café da manhã, os convivas foram conduzidos para piscinas, quadras de esportes, espaços de laser, sempre muito bem servidos. Seu Batista observava a todos, já cogitando seleção de parceria; mas divertia-se a valer. Até quando foi chegando o meio dia em que os convidados foram aconselhados a recolherem-se aos respectivos aposentos, porque no início da tarde iriam “comer o veado”. Seu Batista achava-se radiante; foi para a suíte, banhou-se, cuidou-se com esmero e, muito exausto, ferrou no sono. Acordou muito depois com alguém batendo à porta:
– Seu Batista, vamos comer o veado!
– Já vou! Espera aí!!!
Pulou da cama, ajeitou-se e saiu.
– Onde é?
– É aqui!
Quando Seu Batista adentrou ao salão, a imensa mesa estava posta, cercada de comensais. Ele ainda meio tonto de sono, inquiriu ao amigo:
– Cadê o veado?
– Aqui!
– Onde?
– Na mesa...
Policarpo Batista arregalou bem os olhos e vislumbrou no centro da mesa em uma grande bandeja, cercada de guarnições e de garrafas de bebidas, uma peça assada ao ponto e ainda fumegando.
– Porra! Alexandre, você tá a fim de me sacanear, rapaz...
– Não senhor, de forma alguma...
– Porra cara! Você me convida para comer um veado e vem com este negócio de almoço? Por acaso eu não tenho comida na minha casa, porra? Você tá ficando doido?
– Ah! Seu Batista, já entendi. Eu peço desculpas ao senhor, mas comer um veado aqui no sertão de Camandaroba é somente almoçar uma caça com os amigos mais íntimos, em uma tarde de domingo.
Visivelmente transtornado, Seu Batista passou a chutar móveis, dar bofetadas em paredes, quebrar garrafas de bebidas, gritar, chorar, rir, dilacerar as próprias vestes. Até sair do salão cambaleando em direção a uma das piscinas. Parando junto à mureta de uma delas, sacou uma pistola automática e disparou contra o ouvido, precipitando-se na água. Quando as pessoas ouviram o estampido do tiro e o baque do corpo, correram em socorro, mas ele já estava morto, e do seu ouvido direito saía uma longa faixa sanguínea, tortuosa e trêmula que atravessava a superfície, assemelhando-se à travessia do povo hebreu pelo Mar Vermelho e pelo deserto no rumo da Diáspora Mosaica.




Serrinha, 1/1/11.



*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV – UNEB.